sábado, 3 de abril de 2004

     Amarelo

     I

     Os Três Amigos acordaram e mataram aulas como num dia qualquer. Cada um vestiu sua bonita camisa colorida e bermuda. Como sempre, despediram-se de suas mães com um beijinho no rosto e foram encontrar os outros dois. Fazia tempos que não iam às aulas e matá-las já era cada vez mais desinteressante. As mães já quase não perguntavam da falta de caderno. O garoto de camisa vermelha resolveu renovar uma de suas práticas. Propôs aos amigos se divertirem de um jeito diferente:
     – Vamos engambelar alguém? Faz tempo que nós não fazemos isso.
     Os outros dois, um de azul o outro de amarelo, assentiram. Fazia tempos que não se divertiam intimidando as pessoas na rua e levando seus pertences. Passaram a discutir sobre o local:
     – Tem que ser um lugar sussa, sem gambé e sem muita gente, tá ligado? Mas tem que ser n'algum lugar onde todo mundo pergunta coisa pra todo mundo.
     – Tipo, onde? - perguntou o Azul, sempre com seus óculos escuros.
     – Poupatempo, esses bagulho?
     – Não, caralho! Poupatempo tem gambé pra caralho. Tem que ser sussa, tá ligado? - respondeu o Vermelho.
     – Tipo, n'alguma praça, assim?
     – É, tipo isso.
     – Ô, ali em baixo tem uma. Do lado do Detran.
     – E no Detran num tem os homens?
     – Tem nada! Orra, vamos lá!
     – Beleza. Vamos que essa camisa amarela aqui já tá desbotando, essa porra. Tô precisando uma nova... - disse o Amarelo, rindo e fazendo planos com o dinheiro que levariam.
     Durante o caminho, Vermelho pensou em definir o alvo para o assalto:
     – Não pode ser preto, que você tá ligado, né? Nós pega um preto depois desce a favela inteira atrás de nós, lá na escola, no cafofo... É foda.
     – Pode crê. Também não pode ser alemão. Vai que o cara é doido, meio nazista, sei lá. - redarguiu o Azul.
     – Não viaja, porra. Tô falando sério, caralho. Alemão pode. Tem nada a ver, não.
     – Então não pode é magrelão, nem alto, nem forte, que a gente pode tomar umas porradas ou o otário sai correndo, essas merda.
     E desceram a rua em direção à praça. Passaram por ela três vezes, nada. Num uma velha, nem madame, nem office-boy, nem um retardado. Foi quando avistaram, tentando atravessar a a avenida rumo à praça, um rapaz de quase 22 anos de idade (a mesma dos três), levemente obeso, com cara de desajeitado, barba por fazer, óculos escuros e ouvindo música num fone de ouvido. Se entreolharam e sorriram para si próprios, fechando o sorriso numa feição de ameaça, enquanto o rapaz se aproximava, carregando nas costas sua mochila surrada. O Vermelho pôs a mão no bolso, agitado. O Amarelo, de passos firmes, fazia sinal para o rapaz diminuir seu passo. Disseram coisas ao rapaz, que estava também de camisa amarela e não compreendera o sinal. Só então ele tirou o fone de ouvido e percebeu que estava sendo assaltado.
     – Passa o dinheiro e fica sussa. Na moral! - disse rápido o Amarelo.
     Todos falavam "vai" e "vamos logo". Sempre as mesmas frases em meio às ações num tempo que parece acelerado sempre. Levaram todo o dinheiro dele e as conduções de ônibus e metrô. Como acharam pouco, o Vermelho reagiu com raiva nos olhos:
     – Dá o discman, porra! Passa logo! Mochila no chão. Vamos!! Passa essa porra!
     – Amigo, eu só tenho doze reais - rspondeu o rapaz para o Amarelo, que verificara a carteira enquanto o Vermelho olhava a mochila. O Azul só olhava em volta, cuidando do movimento.
     Estavam para abandonar a vítima quando o Amarelo reparou na camisa amarela do assaltado. Nova, de bom tecido e limpa.
     – Tira a camisa, porra. Passa pra cá!
     – Que?
     O Azul e o Vermelho se surpreenderam.
     – Não, mano! Deixa o cara. Vai dar merda. O cara sem camisa chama a atenção. Vão pegar a gente.
     – Cala a boca! Vão nada! Tá calor. Anda, otário, tira logo!
     O rapaz obedece. Os três abandonam-no. Ameaçando-o caso chame a polícia. Em seguida, dão alguns passos e comemoram a vitória no delito, não sem repreender o Amarelo. Sentam-se embaixo de uma ponte da praça e ouvem o CD que o rapaz ouvia, tranqüilamente.

     II

     No Departamento de Polícia, o rapaz, sem camisa e sem dinheiro, fazia o Boletim de Ocorrência. Deu pormenorizadamente, como requerido, os detalhes do assalto e das características dos Três Amigos. Ao reler os dados e os momentos impressos nos papéis e na sua mente, ele ouve os comentários das atendentes do departamento, na imponente sala ao lado:
     – E não queria ser assaltado? Com esse jeito de pacífico, óculos escuros, escutando música e com roupa amarela, que chama a atenção...
     – Aí já é estar pedindo, né?
     O rapaz assina as vias da Ocorrência e pensando em como voltar pra casa depara-se com o cartaz na saída do D. P.: "Nós estamos aqui para resolver seu problema, não para sermos um".


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Tem coisas que só ficam boas em forma de conto.
Quase tudo é ou deve ser verdade. Aconteceu ontem. A camisa foi só questão de coincidência, por isso inventei que ele tinha levado. Anyway, fiquei com a camisa, mas sem o dinheiro, sem o discman e sem meu cd de mp3. Pelo menos eles deixaram todos os documentos e os cartões de banco.

Agora, qual é a coisa mais irônica quanto a tudo isso? Depois de ter escrito o conto no ônibus, ao passar para o pc, escutando músicas aleatórias, toca Proteção, da Plebe Rude.

Tsc, tsc, tsc.

God is a big joker sometimes.
"Fi, fa, fu, fun for me", he'd say.

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